«Confesso os meus receios: que dizer de algo que foi criado para ser
ouvido? Que aqui e agora se procura dar presença máxima às raízes,
procurando antecipar a razão de ser do futuro, (re)criando no presente
uma música cuja razão de ser é vida e emoção cultural? Ou que são
fragmentos culturais de uma memória colectiva não raro adormecida e não
menos raro menosprezada? Não isto já todos sabem e nada acrescenta à
audição destes "Cenários", do Realejo!
Já sei: avanço pela
questão da autenticidade expressiva que dimana de cada composição, com
uma originalidade assente na variedade dos estilos musicais aqui
soberbamente ilustrados ou sugeridos. Pois, mas já todos sabemos que os
cânones tradicionais não podem (nem devem!) ser encarados como algo de
estático, parado num tempo determinado, mas sim como expressão de
mutações permanentes, de enriquecimentos constantes no diálogo com
outros povos e outras culturas. Mas, assim colocadas as coisas, uma vez
mais a sensação de estar a limitar-se a simples constatações!
No
entanto, uma coisa é certa: com a música do Realejo, a (re)criação
inspira-se e alicerça-se nos elementos significantes do nosso legado
tradicional, sem menosprezar as pressões estéticas da modernidade, mas
de uma contemporaneidade expressiva de tal modo enraizada que as novas
composições parecem emergir do mais profundo da nossa mais autêntica
tradição. Aqui chegados, dirão alguns: pois, a velha questão da
identidade!... Claro que sim, a "velha" questão da identidade, mas não
de uma identidade abstracta e criada em vácuo formalista mas sim num
contexto de amplas interacções influentes. Tanto mais que nenhuma
cultura pode reclamar como própria uma música desligada do intercâmbio e
do diálogo com as expressões musicais de outros povos. E é tudo uma
questão de equilíbrio expressivo, direi. Mas isso é mais que evidente e
nada de original, dirão outros, invocando Nettl: trata-se de um
equilíbrio entre a ideia da música tradicional como fenómeno nacional ou
regional e o conceito de música folclórica como um tipo de música
supranacional.
Embora a música do Realejo se inscreva no contexto
das eurofonias tradicionais e de inspiração tradicinal, nunca é de mais
reconhecê-lo em termos culturais. Recordo um concerto do Realejo nos
palcos Intercélticos: da memória dos sons da surpresa parte hoje para a
alegria da (re)criação dos sons da cultura. Mais do que um grupo, o
Realejo afirma-se hoje como um verdadeiro projecto cultural. E é aqui
que as palavras de revelam de todo inúteis. E porque esta música é acima
de tudo emoção da vida, que cesse a crónica e se renove em cada audição
o sortilégio da nossa própria (re)descoberta.» (Mário Correia, 1998)
1. Amanhecer (Amadeu Magalhães)
2. Music for a Found Harmonium (Simon Jeffes)
3. Bendito das Trovoadas (Tradicional – Beira Baixa)
4. Maragato Son (Tradicional – Paradela, Miranda do Douro)
5.
Cenários I (Nau Trevairs, Rondeau – tradicional de Gers; Polka de Force
Majeure – Patrick Couton; Polka Piquée d’Allard – tradicional; Rondeau
du Savès – tradicional de Gers)
6. Quiçá (Amadeu Magalhães)
7. São Gonçalo de Amarante (Tradicional – Douro Litoral)
8. Cantiga de Realejo (Amadeu Magalhães)
9. Deus te salve, ó Rosa (Tradicional – Aljezur, Algarve)
10. Nunca me canso (Amadeu Magalhães)
11. Final de Inverno (Amadeu Magalhães)
12. Tornelinho (Amadeu Magalhães)
13.
Cenários II (Moda de Harmónio – Carregal Fundeiro, Castanheira de Pêra;
Frei João – Ilha da Madeira; Escumalha – Moinho da Mata,
Montemor-o-Velho)
Recolhas: Michel Giacometti ("Bendito das
Trovoadas" e "Maragato Son"), César das Neves e Gualdino de Campos ("São
Gonçalo de Amarante"), Fernando Meirelles ("Moda de Harmónio"),
Xarabanda ("Frei João") e Júlio Gomes ("Escumalha")
Realejo:
Fernando Meireles – sanfonas, cavaquinhos, bandolim, trancanholas e percussões
Amadeu
Magalhães – concertina, gaita-de-foles, flautas, viola braguesa,
cavaquinhos, bandolim, bandola, guitarra, sarronca, trancanholas e
percussões
Ofélia Ribeiro – violoncelo
Miguel Areia – violino
José Nunes – guitarras e bandolim
Arranjos – Amadeu Magalhães
Gravado nos Estúdios Namouche, Lisboa, por João Pedro de Castro
Misturado nos Estúdios Êxito, por Dominique Borde
Masterizado nos Estúdios Edit, por Dominique Borde e Joaquim Monte
Fotografia do grupo – Miguel Ramos
Fotos e pormenores dos instrumentos – Carlos Barata
Design gráfico e tratamento de imagens em computador – Dupla
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